Sela
No meu fazer artístico encontro semelhanças com a obra do filósofo do imaginário Gilbert Durand, mais especificamente em As Estruturas Antropológicas do Imaginário* em que ele propõe uma classificação antropológica das imagens com base em arquétipos coletivos e os agrupa em dois Regimes do Imaginário: o Diurno e o Noturno. Durand considera a imagem no seu caráter simbólico e aplica o Trajeto Antropológico, um dispositivo para o estudo da imagem que abarca tanto a subjetividade do ser quanto os influxos do meio. Nessa obra, concretamente dentro da estrutura do Regime Noturno Místico da Imagem, o autor apresenta os símbolos que caracterizam o matriarcado (o retorno à mãe, o retorno à terra), os processos de miniaturização ou gulliverização (a valorização do átomo, a intimidade da substância); aparecem a terra, a água, o movimento da descida, a eufemização (a queda se torna lenta descida); defende que o átomo, essa porção mínima, é capaz de promover as transmutações mais importantes; que o atomismo é um processo de gulliverização e, assim como a alquimia, é substancialista. Igualmente percebo traços de semelhança com as novas pesquisas científicas acerca do átomo, como leva adiante a nanociência, que desenvolve tecnologias a nanotecnologia com o potencial de criar a partir do menor: é a engenharia molecular criando novas coisas, nas mais diversas áreas de aplicação, a partir do átomo.
A seguir cito algumas passagens da obra referida:
[...] os processos de gulliverização não passam de representações por imagens do íntimo, do princípio ativo que subsiste na intimidade das coisas. O atomismo essa gulliverização com pretensões objetivas reaparece sempre, mais cedo ou mais tarde, no panorama substancialista, ou melhor, uma teoria dos "fluidos", das "ondas" escondidas e constitutivas da própria eficácia das substâncias. [...] Porque é a interioridade "superlativa" que constitui a noção de substância. "Para o espírito pré-científico, a substância tem um interior, melhor, é um interior", e o alquimista, como o poeta, só tem um desejo: o de penetrar amorosamente as intimidades. Esta é uma conseqüência do esquema psíquico da inversão: a intimidade é inversora. Todo invólucro, todo continente, nota Bachelard, aparece com efeito como menos preciso, menos substancial que a matéria envolvida. A qualidade profunda, o termo substancial não é o que contém mas o que é contido. (p. 257)
No poema Subterrânea, de 2010, se pode perceber o processo de miniaturização, de inversão, de eufemização, a queda tornada lenta e prazerosa descida, o retorno à terra, o fruto, a transubstanciação...
Nestas operações sonhadas, das quais o sal e o ouro são os substantivos, unem-se intimamente os processos de gulliverização, de penetração cada vez mais fina, de acumulação, que caracterizam os simbolismos da intimidade profunda. Toda química é liliputiana, toda química é microcosmo e, nos nossos dias ainda, a imaginação maravilha-se ao ver quantas gigantescas realizações técnicas são devi-das, originariamente, à minuciosa e mesquinha manipulação de um sábio, à meditação secreta, perseverante, de um químico. Haveria, a este propósito, muito a dizer sobre a significação primeira, etimológica, do átomo. O átomo é, de fato, imaginado antes de mais como inexpugnável e indivisível intimidade, muito antes de ser o elemento que o atomismo faz intervir no seu puzzle. A alquimia é ainda mais francamente substancialista que a química moderna impregnada de física matemática. A gulliverização funciona aí plenamente porque é no ínfimo que reside a potência da pedra, e é sempre uma ínfima quantidade que é capaz de provocar transmutações cem mil vezes mais importantes. (p.263)
É que há na estrutura mística, como mostramos a partir de exemplos concretos de imaginação, uma reviravolta completa dos valores: o que é inferior toma o lugar do superior, os primeiros tornam-se os últimos, o poderio do polegar vem escarnecer a força do gigante e do ogro. (p. 276)
Mas quem diz microcosmo diz já minimização. Os atributos "suave", "morno" vêm tornar esse pecado tão agradável, constituem um meio-termo tão precioso para a eufemização da queda, que esta última é travada, amortecida em descida e, por fim, converte os valores negativos de angústia e medo em deleitação da intimida-de lentamente penetrada. (p.202)
É o que explica, de um modo mais geral, que o sentimento da natureza e a sua expressão pictural, musical ou literária seja sempre misticidade: a natureza "imensa" só se apreende e se exprime gulliverizada, reduzi-da ou induzida! a um elemento alusivo que a resume e assim a concentra, a transforma numa substância íntima. (p.278)
* Ed. Martins Fontes, 1997.
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